quarta-feira, 15 de setembro de 2010

UMA VIAGEM PELA PAULISTA DE 1912

Esse trem da história passou por aqui... Morro Grande, hoje Ajapi, entre Rio Claro e São Carlos. Acervo Julio Cesar Piesigilli

"Rio Claro!" gritou o ajudante do trem. Daí a pouco, a plataforma da estação regurgitava de viajantes apressados, carregando malas, segurando crianças, ensurdecidos pelos berros dos carregadores, do bufar insistente das caldeiras das máquinas, apitos dos guarda-chaves e rolar de carros em manobras. Um vai-vem, um vozerio sem fim. Partimos. No carro em que eu ia, cheio, repleto, a prosa irrompeu, e um amigo comenta: "Oh! Por aqui? Então de volta ao grupo?" - "Que fazer, meu caro! As férias acabaram-se, toca ao trabalho". Olhei para as pessoas que viajavam conosco. "Professores e professoras", disse o amigo. Conhecia alguns e algumas. "Olá, Paulo", exclamei, "como foi de férias?"- "Bem, e você?"- "Assim..."

Bem em frente a mim, diversas moças chalreavam, numa expansão contente e alegre. Uma delas era magra, esguia, com um grande chapéu com abas e flores vermelhas de ornamento. Era a mais tagarela. A outra era gorda, bem feita, com umas formas delicadas e esplêndidas, escutava, respondia à amiga quase sempre com um sorriso amável e... olhava-me. Eu já a conhecia. Era de uma cidade vizinha daquela para onde eu me dirigia. Olhei-a. Tornamos a nos olhar. Sorrimos, num consentimento tácito de começo de flerte. Ela era bonita. Os cabelos negros, de um negror profundo de ébano quase desaparecia debaixo do chapéu grande e todo ornado com fitas largas. Tinha uns olhos grandes e pretos, enormes de mistério e de encanto... Uns lábios fortes e grossos que inspiravam a tentação diabólica de um beijo. Ria muito... talvez soubesse que tinha lindos dentes. E o flerte pegou.

Às vezes, para que não desse muito na vista o nosso namoro, eu me punha a olhar as paisagens que se sucediam rápidas, como nas fitas dos cinematógrafos, ora no sublevamento das colinas, ponteadas de cafeeiros, ora nos abaixamento dos vales, onde se alinhavam filas de bananeiras ou emergiam do fundo, branquejando, casinhas miúdas pela distância. Chovia. Finas cordas de água acompanhavam lenta e copiosamente os capões de mato que bordavam a estrada, e lá, ao fundo, embrumados e indecisos, os morros apareciam tristes e desconsolados. Estações passavam.

"Visconde de Rio Claro!" anunciou outra vez o ajudante de trem. Espera. Nós dois continuávamos a tarefa encetada de flertar. Como ela sabia jogar com o nervo patético motor! Que abaixamento estonteante e lindo das pálpebras de espessos cílios aveludados! E o trem recomeçava a correr na sua monótona canção das rodas sobre os trilhos, batendo, batendo sempre, batendo sem parar. Chegamos perto de São Carlos. A prosa dos carros redobrou, ativa, avivada, na ânsia de chegar breve. Poucos minutos depois, íamos de novo levados pelo comboio, correndo à procura dos pontos de chegada. "Caiubi!" gritou de novo uma voz. A melancolia apoderava-se lentamente de mim.

Qualquer coisa de vago e impressionante eu sentia brotar inconscientemente por dentro de minha consciência. Ia-se acabar o flerte. Dali a pouco, entre o buliço da estação e o barulho das manobras, eu ia perder o atrativo dessa viagem que se tinha tornado tão agradável. Chegamos, enfim, à estação onde ela devia parar. Vi-a sumir por entre a turba que enxameava pela estação, com um andar altivo, direito, de garça real... Ainda tenho nos lábios o sabor delicioso dos seus olhares"
.

O texto acima foi escrito em janeiro de 1913 e publicado em um jornal de Dourado. Seu autor, na época com apenas vinte e um anos, era Sud Mennucci, professor primário que dava aulas nessa cidade na época, e que mais tarde se tornou famoso como jornalista e educador. A história, embora romanceada, é provavelmente real; ele passava férias na sua cidade natal, Piracicaba, e a seguir retornava para as aulas em Dourado, seguindo pela Paulista, onde tomava o trem em Limeira, depois de chegar a esta estação vindo de coche.

Na época, ele era obrigado a baldear em Rio Claro, onde a bitola passava a ser métrica. O trem seguia então por Corumbataí, Anápolis, Visconde de Rio Claro, Caiubi, estaçãozinha desativada poucos anos depois, ao lado de uma pedreira... em São Carlos, ele tomaria o trem que o levaria à Douradense e daí para Dourado. O texto acima foi um dos primeiros de sua longa carreira de escritor e articulista, e é uma raridade, no sentido em que descreve uma viagem de trem na época, com a paisagem dos cafezais e outras.

De qualquer forma, que destino terá tido a garota de olhos e cabelos negros de Caiubi?

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